...rascunhos...

...na lata do lixo

A simples observação de dois organismos semelhantes como a de um elefante asiático (Elephas maximus) e de um elefante africano (Loxodonta africana) pode facilmente enganar os olhos de uma pessoa. Uma pessoa leiga poderia dizer que ambos pertencem à mesma espécie visto que suas diferenças morfológicas são poucas e poderiam passar despercebidas. Entretanto, estudos filogenéticos indicam que são grupos muito próximos, pertencentes à família Elephantidae, que inclui três linhagens: Loxodonta, Elephas e Mammuthus, dentre as quais, Loxodonta e Mammuthus são mais proximamente relacionados. Isso significa que essas três linhagens são agrupadas por possuírem um ancestral comum, no entanto, Loxodonta e Mammuthus compartilham um ancestral que não é compartilhado por Elephas (Thomas et.al, 2000.). Ou seja, através da sistemática é possível afirmar que não, um elefante asiático e um elefante africano não pertence ao mesmo gênero. Tampouco são da mesma espécie. Desta forma, esta poderosa ferramenta intenciona não apenas a resgatar a hierarquia da vida (padrão evolutivo), mas também resgatar a sua história evolutiva (processo evolutivo), estabelecendo as suas relações filogenéticas, agrupando e delimitando grupos.
A delimitação de grupos como ocorre com os elefantes demonstra a imprecisão dos palpites que, por mais intuitivos que sejam, nem sempre representam a realidade, os fatos. Portanto, a sistemática não apenas delimita, mas também permite gerar hipóteses sobre a proximidade entre as espécies. Muito além disso, é ainda capaz de dizer se determinados grupos de organismos constituem distintas espécies. Esta capacidade está estreitamente ligada à construção e compreensão de conceitos. A compreensão destes conceitos, como os de espécie por exemplo, pode trazer benefícios para além da atmosfera científica – para a sociedade. O mesmo observador que agruparia o elefante asiático e o africano como uma única espécie, julgando-os por suas semelhanças, frequentemente emprega em seu vocabulário o termo: “raça humana”. Esses julgamentos por mais que sejam alegados intuitivos, são impregnados de “pré-conceitos” que, muitas vezes têm em si uma série de atributos sociais, históricos e culturais. Carregar estes pré-conceitos para a ciência pode significar distorções de fatos. A exemplo de Ernst Hacckel, grande divulgador de Darwin, viu na teoria evolutiva uma ótima arma para afirmar a “superioridade racial dos brancos da Europa” ao invocar a teoria da recapitulação[1]: "ontogenia recapitula a filogenia". Assim como Brinton justificou seu racismo afirmando que os negros são inferiores porque retêm traços juvenis. Bolk, de uma forma contraditoriamente parecida, opôs-se defendendo que os negros são inferiores porque ultrapassam os traços que os brancos conservam (Gould, 2006). Bolk defendeu que os seres humanos se desenvolveram ao reter estágios juvenis de nossos ancestrais e ao eliminar estruturas adultas prévias[2], inversão esta, que poderia gerar onda de racismo contra os brancos, afirmando a superioridade dos negros. (In)felizmente não foi isso o que aconteceu, pois Bolk simplesmente descartou os fatos embaraçosos e ressaltou os traços juvenis dos brancos para sustentar suas idéias. Obviamente, sua crença a priori o levou a levantar provas a favor da superioridade dos brancos, um método longe de ser científico.
Um pouco mais sustentado, mas não menos tendencioso, há quem afirme que não restam dúvidas sobre a existência de raças humanas. Estas por sua vez, seriam um reflexo da seleção natural que sofreu nossa espécie. De acordo com Cox e Moore, cada raça tem seus próprios grupos de alelos. Tomemos como exemplo a pigmentação da pele dos caucasianos que estaria relacionada com a luz solar, a qual é mais fracas nas altas latitude e a pigmentação permitiria reações a luz ultravioleta para síntese de vitamina D, bem como a capacidade de digerir leite – ou seja, a presença da enzima lactase – na idade adulta é atribuída à distribuição de grupos (europeus e algumas tribos norte-africanas) que são, ou foram pastores nômades, para os quais o leite de animais domésticos constituiu fonte alimentar complementar (Cox e Moore, 2009). Eis que entra a questão: como a sistemática influencia nesses julgamentos? Simples, a sistemática traz consigo a necessidade de embasamentos teóricos, dos quais muitos conceitos são ainda muito discutidos.
Existem mais de vinte definições de espécie. E a maioria deles não se resume a um isolamento reprodutivo, como Ernst Mayr afirma (Stamos, 2003). As discussões giram em torno das tipologias, morfologias, variações populacionais, independência evolutiva, relações tocogenéticas, entre muitos outros aspectos. O que pode parecer trivial, dependendo da forma como é colocado, torna muitos desses conceitos arbitrários. Wheler e Platnick são muito criticados pela definição de espécies, que seria uma pequena agregação de populações ou linhagens diagnosticadas por combinação única de caracteres. Porém, sabe-se que as diferenças observáveis são apenas indícios da diferenciação de espécies, mas não são suficientes para suportar a idéia. Já Wiley afirma que uma espécie evolutiva é uma entidade composta de organismos que mantêm sua identidade em relação a outras entidades ao longo do tempo e do espaço, com seu próprio destino (independente) evolutivo e histórico. Esta última definição torna mais abrangente e dá uma visão um pouco mais geral em torno do assunto. Espécies são formadas por organismos, mas sua categorização torna-se discreta, enquanto que as variações entre organismos são contínuas. As controvérsias estão nos limites que diferenciam uma espécie de outra. A espécie é a unidade fundamental da sistemática e se seu embasamento teórico for frágil, igualmente serão as hipóteses filogenéticas. Não cabe a este ensaio determinar qual o melhor conceito de espécie, mas inserir sua importância num contexto tanto científico como social.
Cox, em seu livro Biogeografia – uma abordagem evolucionária, demonstra conceitos muito frágeis no que diz respeito a espécies, uma vez que não discute suas controvérsias:

“A característica marcante que distingue os membros de uma mesma espécie é que
possam acasalar uns com os outros sem que haja redução de fertilidade nas
gerações subsequentes.”


E ainda vai além:

“ Considerando-se que não há evidência alguma de diminuição da fertilidade
resultante do cruzamento entre seres humanos, mesmo entre tipos dos mais
distantes geograficamente ou aparentemente mais diferentes, não resta dúvida de
que são simplesmente raças diferentes de uma única espécie, Homo sapiens.”

As raças que dividiriam as espécies, como Cox propõe (longe de ser primeiro a fazer isso), são as chamadas subespécies. A subespécie é uma categoria de conveniência. Não há exigências de que uma espécie tenha subdivisões. Gould rejeita a classificação racial do homem da mesma forma que rejeita a classificação racial de qualquer outra espécie. Segundo ele, ninguém pode negar que o Homo sapiens seja uma espécie marcadamente diferenciada; poucos contestariam que a diferença na cor da pele sejam o mais óbvio sinal dessa variabilidade. Mas a variabilidade não exige a designação de raça. Ora, se já existem discussões em torno dos conceitos de espécie, dentre os quais são muito criticados aqueles que desconsideram variações populacionais, por que passar por cima desse debate e iniciar outro – ou melhor, o mesmo - igualmente controverso?
Gould ainda enfatiza :

“Não existe nem nunca existiu uma prova sem ambiguidade para determinar genética
de traços que nos tentam a fazer discernições racistas.”

Essas discussões na área científica trazem à tona questões diretamente relacionadas à sociedade. Comportamentos, julgamentos e relações podem ser influenciados a partir do conhecimento da sistemática. Seu entendimento pode mudar a visão acerca das “raças humanas”. Assim, podemos nos apropriar da sistemática como uma arma de educação, como uma representação da vida, como uma linguagem da biodiversidade. E desta forma, compreendemos que a diversidade nem sempre separa, mas une indivíduos. Seja em táxons ou etnias. A biodiversidade humana é cultural.
J. B. Birdsell, citado por Gould, arremata:

“Talvez devêssemos empenhar-nos em investigar a natureza e a intensidade das
forças evolutivas e deixar de lado, quem sabe para sempre, os prazeres de
classificar o homem.”






[1] A teoria da recapitulação afirma que cada organismo em seu desenvolvimento embrionário (ontogenia), tende a recapitular os estágios por que passaram seus antepassados (filogenia). No caso do homem, o embrião humano teria começado a vida como um protozoário marinho, teria se desenvolvido em um ambiente aquático até se tornar um verme com um coração tubular, depois seria um peixe com brânquias e um coração com duas câmaras, passaria a ser um anfíbio com um coração com três câmaras e um rim mesonéfrico, e depois um mamífero com um coração de quatro câmaras, rim metanéfrico e uma cauda, até finalmente ser um ser humano. Desta forma, o embrião humano reteria “vestígios” de sua evolução anterior, recapitulando as sua fases principais.
[2] A este processo se dá o nome de Neotenia, onde raças “superiores” retém traços juvenis na idade adulta.











REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


COX, C. Barry; Moore, Peter D.(2009) Biogeografia: uma abordagem ecológica e evolucionária. 7ed. Rio de Janeiro: LTC.

GOULD, Stephen Jay. (1999) Darwin e os grandes enigmas da vida. 2ed. São Paulo: Martins Fontes.

STAMOS, David N. (2003) The Species problem – Biological species, ontology and the metaphysics of biology. Oxford. Lexington Books


THOMAS, M.G., Hagelberg, E., Jone, H. B., Yang, Z., Lister, A. M. (2000) Molecular and morphological evidence on the phylogeny of the Elephantidae. Department of Biology, University College London, UK.

VASCONCELLOS, Alberto C. (2007) Sistemática Biológica: Sua influência na Conservação e Manejo de Flora e Fauna. Revista Fapese, v.3, n.2, p. 77-80, jul./dez. 77

1 rabiscos:

Estou sem fôlego: você é completa.